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"Para crescer, para amadurecer, para se ser feliz mais tarde, não há como um bom desgosto"
por Francisco José Viegas 

"Antigamente, chorava-se bastante. A literatura, de todos os géneros e de todas as condições, falava bastante de choros, convulsões, tristezas, morrer d`amor, sofrer de verdade, lágrimas de vários tipos, alaridos intermináveis, lamentações, prantos inqualificáveis, lamúrias, queixumes indescritíveis, sofrimentos atrozes, mais choros ainda, silenciosos ou cheios de ruído, de horrores. E falava ainda de desgostos.
Nos nossos dias o desgosto ficou fora de moda. Sobretudo os desgostos de amor. Passemos uma vista de olhos pela literatura dos nossos dias e teremos a prova. E mesmo pelo cinema. O desgosto desses anos loucos da literatura romântica passou, agora, a ter a “depressão” como anticlimax. Se, antes, nos romances de Camilo ou dos românticos de boa estirpe, se chorava e havia desgostos, agora uma simples “depressão” substitui o enorme complexo de sentimentos que estavam naturalmente implicados ao fim duma separação ou de uma desilusão de amor.
As “Cartas” de Soror Mariana são um dos exemplos mais claros dessa literatura e desse sentimento - o desgosto. A freira de Beja, uma clarissa e romântica impenitente que recordaria o seu cavaleiro até ao fim dos seus dias, é todo um paradigma que vem até hoje. Mas, nos nossos dias, o álcool, as drogas (leves ou duras), o jogging, a aeróbica, as dietas, as viagens de Verão ou a companhia de um animal doméstico substituem o exagero romântico de outros tempos. Ninguém está disposto a chorar até ao fim pelas suas dores de amor, pelos seus sofrimentos de coração.
Também é verdade que nunca houve, como nos nossos dias, “o medo do grande amor”, título de um livro, aliás, que devia merecer toda a nossa atenção. O “medo do grande amor” é sobretudo, o medo do falhanço, o medo da derrota, o medo de enfrentar a nossa imagem no espelho de uma biografia onde se acumulam casos e descasos - e o medo de que possamos falhar naquilo que, no princípio de tudo, elegemos como fundamental, essencial, o “grande amor”. Mas também já ninguém, ou quase ninguém acredita nesse “grande amor”: em vez disso, fala-se frequentemente de “relação”, um nome inqualificável e desprovido de emoção e sentido.
De modo que, depois de uma separação, o “desgosto”, o velho e simpático “desgosto” que, no século passado, produzia sonetos, sofrimentos, febres altas e jejuns espectaculares, acaba por ser uma espécie de “reconstrução de uma vida”. É muito mais saudável, certamente, mas produz muitas conversas, catarses, banalidades de psicologia baratíssima. Enfim: foi-se o desgosto mudo, o desgosto do isolamento, o grande desgosto que transforma a vida numa coisa sem sentido nem afecto.
Ora, o desgosto é uma etapa necessária na vida de cada um. O desaparecimento, a morte, as despedidas, o não-sei-quê que irrompe sem razão nem justificação, são meio caminho para que se fale do desgosto. Uma adolescência sem grandes desgostos, desilusões e choros não merece ser recordada - pareceria, apenas, uma banalidade. Ora, a adolescência precisa desses voos de sofrimento e de desalento, para que o optimismo histórico dos nossos dias seja, pelo menos, mitigado - para que o corpo tenha uma alma e não se reduza a uma matéria orgânica absolutamente biológica, capaz de reacções químicas mas impassível perante o fim do mundo permanente que empresta alguma fragilidade ao género humano. As adolescentes de alguns anos atrás sofriam mais, repetiam na vida real aquilo que a grande literatura, o grande cinema, o grande romantismo, prometia como uma forma de dar sentido à vida. Choravam mais. Eram mais humanas.
De resto, havia, na literatura do século passado, cenas lancinantes de cabelos arrepelados, de doenças estimuladas pela dor d`amor. Depois disso, sim, acontecia a grande ressurreição do mundo que apagaria o desgosto da noite para o dia. Talvez mesmo um novo amor, uma nova vida, uma nova cidade.
O amor, grande ou pequeno amor, passou para a categoria do “piroso”, do “kitsch”, onde o desgosto foi anulado como uma inutilidadde. Há cada vez mais vergonha de mostrar um afecto, uma sensibilidade, uma lágrima.
Um homem, por exemplo, deve ser forte, deve saber ultrapassar o sofrimento e o desgosto. Mas deve, igualmente, ter a grandeza e a serenidade de, por alguma forma aceitar o profundíssimo peso de um desgosto que mudou a sua vida ou a transformou. Uma vida sem essas fraquezas não terá o brilho e a glória que faz da vida um sobressalto feliz. Havia, no século passado, a ideia de que a felicidade poderia, até, exigir esse pequeno desgosto que marcaria a pele e a alma. Hoje, o desgosto de amor foi substituido pelo despeito e pelo ressentimento, que são perigosas doenças de carácter, meio caminho para a cólera e a injustiça.
Para crescer, para amadurecer, para se ser feliz mais tarde (ou quando for), não há como um bom desgosto. Nada mais humano que um bom desgosto."

3 comentários:

Anonymous said...

.. e para mim tb!

A

maninha said...

"Nada mais humano que um bom desgosto"...Não há que ter vergonha de mostrar os sentimentos,um afecto,uma lágrima, uma sensibilidade...só assim se cresce...amadurece....se é feliz.... e se vive a VIDA verdadeiramente no sentido e toda a sua plenitude maninha!subscrevo todas as tuas palavras! tenho tido tt trabalho que nem tenho tempo para visitar o teu adorável blog nem para falar contigo.... mas ADORO-TE muuuuuuito e tás sempre no meu coração!:)Mil beijos doces para um doce de maninha1..

ISA said...

Belissimo texto.
Obrigada pela partilha.
Jinhos!

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