- Vamos à farmácia?
Olhei para ti. Estavas vestida de negro e tinha o auricular do telefone posto. Eu precisava de ir à farmácia, de facto. Normalmente quando fazia alguma sugestão era com a timidez de quem adivinha um não. Assenti. Sabia que o tempo era escasso e quando te predispões a partilha-lo é um gesto voluntário e com significado. Pensei no que é que estarias a pensar e se ela saberias que eu estaria a pensar nisso.
- Já volto.
Saiste e eu fiquei a ouvir um programa de rádio qualquer. Esperei enquanto ao longe via a luz da farmácia a piscar num verde fluorescência.
- Já está.
Entraste no carro a sorrir. Retribui.
Rodei a chave na fechadura. Entramos. Tomei um duche rápido enquanto lias alguns dos meus textos. Sempre senti pouco à vontade em mostra-los, mas procurei não pensar muito nisso. A água quente caía sobre os ombros e aliviada a carne de um dia tenso.
Sentei-me. Pegaste no betadine e limpaste o corte. Por baixo da pele estremeci, apesar do aspecto já quase curado da ferida os músculos acusavam a dor do embate.
- Dói?
Rodaste a ligadura sobre o pé. Uma volta.
- Um bocadinho.
Doía. Mas eu pensava noutras coisas. Pensava na vulgaridade de estar ali sentada a deixar que tratasses de mim.
Duas voltas. Três voltas.
- Assim já está bom, vou prender.
Incomodar-me-ia deixar-me estar ali sentada de perna esticada sobre a sanita, mas desta vez não. Há um leve indício de constrangimento nessas situações em que expomos a nossa banalidade. Observava a maneira cautelosa como as tuas mãos se moviam como se adivinhassem os pontos de dor. Não é a vertigem sôfrega, mas esta capacidade de deixarmos entrar na nossa vulgaridade despida, na nossa fragilidade que nos faz pressentir que amamos genuinamente alguém. Deixei-me ficar a observar os teus gestos calmos e medidos. Não valia a pena falar. Eu sabia que tu sabias em que é que eu estaria a pensar.
O amor senta-se em vulgares bancos de jardim.
pg.1 do livro de Eva
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