Desculpa-me mãe, perdi o teu presente entre todos os sacos de comida com que enchi o carro.
Desculpa-me mãe, mas um dia vais compreender que para mim não Natal não é o bolo embalado que compras no supermercado, nem o cabrito temperado de véspera que é preciso vigiar como uma criança no berço.
Passa-me mais uma batata. Passei aquela e outra e outra até se ter esvaziado o saco de rede vermelha dos 15kg de batatas para cozer. Tinha as mãos engelhadas da água do alguidar. Neste alguidar cabe o Natal de muita gente tal o seu tamanho. Ai! Cortei-me! M... Deixa lá, eu já parti umas três unhas. Olhei para ela num sorriso rápido antes de pegar no alguidar e despejar no tacho gigantesco uma avalanche de batatas partidas aos cubinhos. O bacalhau é mais fácil, é só sobrepor as fatias e deixar cozer....
Pega aí nessa asa. Peguei e senti o ombro responder num grito. Segura com força miúda! Ainda vais ter muito que bulir hoje. Tropecei nos pés até carrinha com as mãos apertadas uma sobre a outras a queimar na pega fina de pano.
Dois tachos no chão. Nós lado a lado no banco corrido de madeira improvisado. As faces coradas do frio e do esforço.
Sair com o coração a bater para o frio da noite. Dá aí os pratos e os copos. Dei.
Uma posta três batatas em cada prato de plástico branco como a geada. Servia depressa, o mais depressa que a minha pouca destreza conhecia, deixei deslizar uma posta para o chão. Tem cuidado! Olha que estão contadas! Não respondi. Tentando melhorar sem levantar os olhos do tacho do bacalhau. Foram servidos um após outro todos os pratos. Uma posta, três batatas, um naco de pão. É estranha esta sensação, aqui o Natal é apenas feito deste aquecer do estomâgo.
Falamos um bocadinho, do tempo, das pessoas, outras vezes não falamos de nada. Lado a lado com outras pessoas que quiseram estar aqui mãe, em mais lado nenhum, porque aqui fazem diferença. Porque aqui estão dar qualquer coisa importante, que não se compra nem se pede temos de querer dar.
Desculpa mãe, amanhã vou para casa. Amanhã tenho à espera uma casa como aquela que aqui construi hoje.
Desculpa mãe, são estranhas as minhas formas de amar.
São 2h13. Vou dormir. Estou quase a por-me a caminho. Maninha, estou quase a por-me a caminho.
1 comentários:
Neste Natal, como se fosse Verão.. *** Miss you ***
Este Verão ensina-me
a amar as minhas cicatrizes
a enfeitar-me com marcas de estrangulamento no pescoço
Este Verão ensina-me
a fechar à chave a amargura e fico
bem roliça e anafada pareço bem tratada
Este Verão ensina-me
a gritar o bel canto
Este Verão ensina-me
que a solidão descansa
e cresce numa mão
Este Verão ensina-me
a não confundir um corpo disponível
com o desejo de felicidade
Este Verão ensina-me
a ser para cada pedra um espelho de água
Este Verão ensina-me
a amar grandes bolas de sabão e pequenas
antes de rebentarem
Este Verão ensina-me
que tudo sem nós
por si continua
Este Verão ensina-me
um rosto gelado feliz
Este Verão ensina-me
tenho que ser eu a bater no tambor
quando quiser dançar
este Verão ensina-me
a ser sem felicidade sem tristeza por uns
segundos aliada de Deus
Este Verão ensina-me
a acordar de manhã. Grata. Sozinha.
Este Verão ensina-me
que a folha do limoeiro só deita cheiro
quando a desfazemos entre os dedos.
Ulla Hahn
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