O que é anterior às coisas está na alma para prevalecer. Não é só uma questão da memória, um sulco a atravessar esse travejamento sombrio e cintilante, talvez tudo tenha apenas a ver com o silêncio, o silêncio agudo que sobe ao ouvido e faz vibrar o corpo num êxtase imperceptível, o instante de beleza que transita na pele e desce à boca para afirmar e interrogar. Há também a sala, com os seus cantos inóspitos, os diademas translúcidos que as aranhas teceram, o epicentro de um cismo neste lado do fogo, onde a prega de um lenço revela a sombra indescritível. São indícios de formas, sinais, grãos finíssimos de areia púrpura que flutuam no ar, um traço oblíquo de luz que une a nuca às mãos, a tristeza, a perdurável tristeza de quem passou pela vida nesse motor regressivo, essa turbina que tocou outras vidas à volta, outras almas que se perderam porque alguém ocultou sob a pedra o fascínio e o arrebatamento de uma escuna branca que secretamente aguarda o momento de zarpar à descoberta de algum mar na terra, alguma estrela de água. Ah, a lágrima, também a lágrima há-de ser um desses indizíveis detalhes que marcam o rosto, ferve nos lábios quando o coração se concentra sobre o peito, num ritmo onde tudo acontece como num filme lento de cores saturadas, o ocre do mundo a diluir as recordações porque sempre se institui algum abandono nessa forma sublime de amar, prudente e imprudente, sob a gardénia azul e a aveleira intensíssima. Um rio espraia-se ante o olhar coberto de escuridão, as mãos abrem-se e afeiçoam as lâminas que sulcam a carne, o sangue mistura-se nessa amálgama de espaços brilhantes e fitas coloridas, um ramo de violetas cresce sobre esse nevão, além de um limite e outro, onde as forças há muito diluíram as dúvidas que por um simples contacto com a realidade desabam por essa bátega ardente, imaculados clarões que mancharam os dedos e sabemos juntar ao que jamais esperamos, uma asa, uma porção de éter, um golpe no céu para que alguém acredite nos anjos, para sempre acredite. O universo expande-se em múltiplas alusões a esses arcos antigos, a cabeça quase não as suporta, há um juízo inteligível que nos toca para que nada se possa entender, tudo se possa entender, de um mistério a outro os dedos tocam esse pó reversível que adere aos olhos e arde num rastro de pura energia que o despojamento calcina, uma criança preenche com a claridade envolvente, serpente e predestinação aproximando-se do frágil ponto de luz que desoculta o visível, sortilégio, volume, ascensão, suporte onde todos os sedimentos se reúnem, todas as tentativas de destruição se transfiguram. E mais que visão, casa, mais que memória, índice, mergulho onde o rosto aguarda o princípio e o fim de um incêndio esperado, essa forma soberba de comunicar o amor, implacável, eterno, fulcro e ressonância a transitar pelo tempo, medida e desmedida, meticuloso alvoroço impondo ao firmamento um círculo, uma trama, um desenho de luzes.
1 comentários:
O que é anterior às coisas está na alma
para prevalecer. Não é só uma questão
da memória, um sulco a atravessar
esse travejamento sombrio e cintilante, talvez
tudo tenha apenas a ver com o silêncio,
o silêncio agudo que sobe ao ouvido
e faz vibrar o corpo num êxtase imperceptível,
o instante de beleza que transita na pele
e desce à boca para afirmar e interrogar.
Há também a sala, com os seus cantos inóspitos,
os diademas translúcidos que as aranhas teceram,
o epicentro de um cismo neste lado do fogo,
onde a prega de um lenço revela a sombra
indescritível. São indícios de formas, sinais,
grãos finíssimos de areia púrpura que flutuam
no ar, um traço oblíquo de luz que une a nuca
às mãos, a tristeza, a perdurável tristeza
de quem passou pela vida nesse motor regressivo,
essa turbina que tocou outras vidas à volta,
outras almas que se perderam porque alguém ocultou
sob a pedra o fascínio e o arrebatamento de uma escuna branca
que secretamente aguarda o momento de zarpar
à descoberta de algum mar na terra, alguma estrela
de água. Ah, a lágrima, também a lágrima
há-de ser um desses indizíveis detalhes
que marcam o rosto, ferve nos lábios
quando o coração se concentra sobre o peito, num ritmo
onde tudo acontece como num filme lento de cores
saturadas, o ocre do mundo a diluir as recordações
porque sempre se institui algum abandono nessa forma sublime
de amar, prudente e imprudente, sob a gardénia azul e a aveleira intensíssima.
Um rio espraia-se ante o olhar coberto de escuridão,
as mãos abrem-se e afeiçoam as lâminas
que sulcam a carne, o sangue mistura-se nessa amálgama
de espaços brilhantes e fitas coloridas, um ramo de violetas
cresce sobre esse nevão, além de um limite e outro,
onde as forças há muito diluíram as dúvidas
que por um simples contacto com a realidade desabam por essa bátega
ardente, imaculados clarões que mancharam os dedos
e sabemos juntar ao que jamais esperamos, uma asa,
uma porção de éter, um golpe no céu para que alguém
acredite nos anjos, para sempre acredite. O universo expande-se
em múltiplas alusões a esses arcos antigos, a cabeça quase não as suporta,
há um juízo inteligível que nos toca para que nada se possa entender,
tudo se possa entender,
de um mistério a outro os dedos tocam esse pó reversível
que adere aos olhos e arde num rastro de pura energia que o despojamento
calcina, uma criança preenche com a claridade
envolvente, serpente e predestinação
aproximando-se do frágil ponto de luz
que desoculta o visível, sortilégio, volume, ascensão,
suporte onde todos os sedimentos
se reúnem, todas as tentativas de destruição
se transfiguram. E mais que visão, casa, mais que memória, índice,
mergulho onde o rosto aguarda o princípio e o fim de um incêndio esperado,
essa forma soberba de comunicar o amor, implacável, eterno,
fulcro e ressonância a transitar pelo tempo,
medida e desmedida, meticuloso alvoroço impondo ao firmamento
um círculo, uma trama, um desenho de luzes.
de Desenho de Luzes, Amigos de Azertyuiop, 1997
Chihiro
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