Hoje, não quero falar. Hoje, não posso mudar-te. Por isso emudeço. E mudo.
Hoje, sei-o: os outros são como são. E tu és como és em cada momento em que vais sendo. Não te posso pedir que mudes, por muitas vezes ou poucas que te peça, tanto faz. Não vais mudar-te naquilo que quero. Se mudares, mudarás apenas para aquilo que quiseres e puderes ser. Não vale de nada ensaiar palavras ou comportamentos, não vale a pena dizer "devias fazer isto ou aquilo" se fazer isto ou aquilo for ser isto e aquilo.
Hoje, simplesmente, não vai acontecer. O sangue que te corre nas veias terá sempre essa densidade, será sempre o mesmo, mesmo que o tentes drenar e diluir. Mesmo que faças uma transfusão. Mesmo que o desejes com todas as tuas forças.
Hoje queria reverter a rotina. Reverter os dias, as horas, os minutos. Queria fazer rewind como se a vida fosse uma fita de cinema que roda nos dois sentidos. Queria refazer.
Hoje, desapetecem-me as palavras, os carinhos, a subfelicidade. Sinto-me a viver de felicidades pequeninas, de comas sucessivos, suspensos em beijos, em braços, em pedaços de ti, de mim, dos outros. Hoje o futuro parece tão longe, tão inacessível. E eu não me sinto valente.
Hoje, o céu desenha cadáveres cinzentos que me entram pelas narinas e que empurram a minha alma para um lugar recôndito e bafiento. Hoje não quero nada. Mas sei que quero tudo. Que quero demasiado. Que quero desmesuradamente. E sei que esse querer, vulnerável e falível, não cabe dentro de ti, não cabe em nós. Porque nós somos outra coisa.
Hoje consigo sentir a dor a entrar. A invadir todas as células, a tolher os músculos e a ganhar, vitoriosa, a luta. Sei-me de pernas para o ar. E vejo que me caem dos bolsos, por força da gravidade, as convicções que amealhei com tanto carinho e empenho. Se estivesses também de pernas para o ar seria tão mais simples. Poderíamos caminhar sobre o tecto da nossa vida e revirar do avesso os dias. Revolver e voltar a dar.
Hoje queria que lesses nos meus olhos essa angústia porque não consigo falar. Que me abraçasses e que me dissesses que tudo vai correr bem. Que o chão vai voltar a ser chão e não esta massa mortífera que engole o peito do avesso, expondo as veias a céu aberto e espalhando sangue por onde passa. Hoje não quero que me contes os teus problemas mundanos, as guerrilhas do trabalho, as dúvidas e as soluções pragmáticas. Hoje não. Não quero a tua racionalidade. A tua convicção. A tua verdade.
Hoje, só queria que fosses como um papel colorido que, com doçura, envolve em mil camadas protectoras o presente mais frágil, protegendo-me da queda certeira em mil estilhaços.