A irrepetibilidade da vida. Aquela coisa de nunca se pisar duas vezes a água do mesmo rio, é mesmo verdade não é? Não sei se é da chuva. Se do aquecedor aqui ao meu lado a afrouxar o arrepio das gotas lá fora. Não sei se é o vergar dos bambus no terraço na sua luta desigual com a tempestade. Mas envolve-me uma nostalgia, intriga-me saber para onde vão as coisas que vamos vivendo. Será que há um registo algures, em arquivos cinzentos com etiquetas brancas escrevinhadas por funcionários curvados pelos desamores da vida, destacados para uma cave bafienta para arrumar as nossas vivências por ordem cronológica? Se sim, que número ou designação lhe dão, para as arrumarem? No meu arquivo, esta chama-se "Da doçura"
Abriu a porta e olhou-me sonolenta. Calçava as minhas pantufas brancas de pêlo e o meu robe azul. Não sabia muito bem o que esperar daquele dia.
Daquela semana.
Daquele mês.
Daquele ano.
Daquela vida.
Se a vida a engolisse, por ela, podia bem ser ali e agora. Mas não engoliu. Foi engolindo aos poucos, mas essa é outra história da qual não me apetece abrir agora o arquivo.
Levantei-me de um salto. O ar frio do corredor invadiu o quarto, como se almas perdidas ali soprassem para se alimentarem do calor dos corpos vivos. Senti a madeira suave e fria debaixo dos pés e meti-me na casa de banho para o ritual do despertar. A música tocava lá fora e confundia-se com os pássaros que chilreavam no jardim, do outro lado da rua. Ouvi-a a cantar e cantei também. Nada como acordar com a música a sair-nos pela boca. Bebi o sumo de laranja que me fez, das mesmas laranjas que perfumavam a cozinha, bebi desses lábios trémulos a minha própria doçura, à procura das palavras que deambulavam no ar sem encontrar o papel certo para pousar.
Ela via as pequenas coisas. Como eu as via. Parecia, por vezes, que o resto do mundo tinha olhos diferentes. Ou então éramos nós, que em vez de olhos, tínhamos umas janelas grandes, daquelas que há nos edifícios modernos e que ocupam a parede toda. Mas as nossas abriam, ao contrário das dos edifícios. E as pequenas coisas - como a brisa fresca da manhã, as borboletas esvoaçantes, o dia a correr morno por entre os dedos, um chá partilhado, o mar silencioso ou um colega a dar-nos um "bom dia" mais animado - tudo isso, tinha côr e vida e fazia sentido. Essa manhã foi uma manhã como as outras, excepto numa coisa. Ela estava lá. Mesmo quando deixou de estar, estava. Depois deixou de estar mesmo quando não estava.
E eu não consigo encontrar a designação certa que o senhor funcionário dos arquivos lhe deu para poder requerer de novo a sua presença. Intriga-me para onde foi o que poderei ter sido depois dela ter desaparecido. Ou o que ela poderá ter sido. Revolve-me na noite em pesadelos, em que o mundo acaba e morre e se esquece do que foi, verde, com borboletas coloridas de voo rasgado na imensidão. Nesses pesadelos a doença que prolifera e mata a humanidade é esquecermo-nos de quem somos. E dou por mim a sonhar que escrevo listas detalhadas de tudo o que fui e afinal, tudo o que fui, foi feito de ti, por ela, por este, aquela, o outro, por todos os que amamos. O que somos é uma lista de listas emaranhadas de outros seres. E no meu sonho quero fazer a lista de todos, rompo os dedos em tinta para escrever tudo, para que quando a doença atacar e eles não se lembrarem mais, poder ler em voz alta para que saibam quem são.
Como esta lembrança.
Que está no meu arquivo, com o nome certo, mas num alfabeto que não existe.

1 comentários:

Luís said...

Onde se escondem essas linhas, recordações do que fomos e do que sentimos? A facilidade com que apagamos outros da nossa vida é exemplificativa de como a nossa memória afectiva funciona. Mas depois sentimos a falta, vem essa nostalgia... e afinal funcionamos de uma outra forma que não sabiamos bem dominamos minimamente. Gostei muito. Muito, muito. Perfeito.
Beijos com saudades, colega

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