"Para Parménides, o universo está divido em pares de contrários: a luz/a escuridão; o grosso/o fino; o quente/o frio; o ser/o não-ser. Segundo ele, um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode parecer-nos de uma facilidade pueril. Excepto num dos casos: o que é o positivo, o peso ou a leveza?
Parménides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ele razão?
(...)

Um certo Sr. Dembscher devia cinquenta florins a Beethoven e o compositor, que vivia sempre sem um tostão, foi-lhe cobrar. "Muß es sein? Tem que ser assim?", suspirou o pobre Sr. Dembscher, e Beethoven respondeu com um sorriso: "Es muß sein! Tem que ser assim!". Depois anotou estas palavras com a sua melodia no seu caderno de apontamentos e compôs com esse motivo realista uma pequena peça para quatro vozes: três vozes cantam "es muß sein, ja, ja, ja". "tem que ser assim, sim, sim, sim", e a quarta voz acrescenta "heraus mit dem Beutel!", "abra a sua carteira!".

O mesmo motivo tornou-se, um ano mais tarde, o núcleo do quarto movimento do último quarteto de Beethoven. Já sem pensar na carteira de Dembscher. As palavras "es muß sein!" iam assumindo para ele uma tonalidade cada vez mais solene, como se o próprio destino as tivesse pronunciado. Na língua de Kant, mesmo a expressão "bom dia!", devidamente articulada, pode parecer uma tese metafísica. O alemão é uma língua de palavras pesadas. "Es muß sein!" não era mais do que uma brincadeira, mas "der schwer gefaßte Entschluß", era a decisão gravemente pesada.

Beethoven transformara, portanto, uma inspiração cómica num quarteto sério, uma brincadeira em verdade metafísica. É um exemplo interessante da passagem do leve para o pesado. Essa mutação não nos surpreende, mas ficaríamos indignados se Beethoven tivesse passado do tom sério de seu quarteto à brincadeira leve do cânone a quatro vozes sobre a dívida de Dembscher. No entanto, estaria agindo inteiramente de acordo com o pensamento de Parménides: do pesado ao leve, portanto, do negativo ao positivo! No começo haveria, sob a forma de esboço imperfeito, uma grande verdade metafísica e no fim, como obra terminada, a mais leve das brincadeiras.

Só que nós não sabemos pensar como Parménides."

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

2 comentários:

Rui Pedro S. Nascimento said...

Tornar o negativo em positivo é uma arte que nem todos dominam. Devia fazer parte do manual básico do saber viver! E eu quero um manual desses!
Muito bom o texto. Não conhecia.
Vou passar mais vezes.

maninha said...

Maninha querida tou sem computador há mais de uma semana... avariou e não se justifica o arranjo...é demasiado caro, e com tanto trabalho nem tenho tido tempo quase para respirar...agora vim dar uma espreitadela aqui no serviço...qunado acabares de ler esse livro se puderes maninha, empresta-me!please, ando há anos para o ler e ninguém o tem -adoro Milan Kundera...mas adoro-te muito mais a ti :) Mil beijufas

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