Apesar dos anos me pesarem no contorno dos olhos e me curvarem as costas, há algo inexplicavelmente dócil de uma fé inabalável que não conhece Deus algum, que se mantém impenetrável ao torpor dos dias e ao caldo inodoro do conformismo. Apesar da correnteza dos dias me ter engolido em garfadas grandes os sonhos e do desgaste de fazer em contra mão o destino, apesar das horas me arrancarem a cada instante a pele e o rosto tão igual, ter por dentro ossos que se quebram e se solidificam em ângulos novos. Apesar dos momentos em que me esqueço e me perco no caminho mais simples, e me quedo na cama cansada de arrastar o corpo entre escombros de ilusões e desejos. Apesar dos momentos em que me faltam as palavras e com elas o ar, apesar dos momentos em que se emaranha a vontade e a queda. Apesar das mãos estendidas, abertas que estendo, apesar de fingir para a vida sentidos que a vida não tem, porque a vida é circular como os lagos profundos. Apesar dos azuis e lilases, das investidas e dos esgotamentos, apesar de mim, de ti, do que foi e do que há-de vir…Apesar das palavras deixarem entre si espaços inabitados nunca poderei lá morar. Apesar da mãe e do pai e dos irmãos aqui todos a sorrirmos na moldura envernizada a esmalte caro, não haver família. Apesar do intenso cheiro a éter a latejar na minha cabeça, apesar dos silêncios e das ausências, apesar do amor que nunca veio para ficar e dos corações que nunca ouvirei bater junto ao meu, apesar da vida e da morte, do rosto pálido de força exangue, do violino, do piano, da relva e do chão, apesar do apesar…eu respiro, eu fico, eu acordo e morro, renasço, sem princípio nem fim…
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