O homem que diz adeus. O senhor do Adeus. O maluco do Saldanha. Já o ouvi ser chamado por vários nomes uns mais simpáticos que outros. Por João Paulo que é o seu nome apenas hoje da boca dele. E para mim agora terá sempre nome porque ele não gosta que lhe chamem senhor.
Com os carros do outro lado e as costas das mãos à nossa frente. É por ele que tocam as buzinas, que se atiram beijos e sorrisos, que se gritam "boas noites!" e "adeus!". Eu não percebia porque acenava, mas acenava sempre numa tentativa de agradecer aquele estar ali a povoar a minha noite, o meu caminho. Agora ao seu lado vejo repetirem-se os acenos como se cada um dos mundos fechados que a cidade encerra e os quais erigimos num anonimato desconfiado concedessem tréguas neste reduto de inocência pueril e despojada esquecida das suas quase oitenta primaveras. A sua roupa clássica e a ondulação do cabelo grisalho alinhado com gel, dão-lhe um ar meio aristocrático, frágil e distinto. A sua história é simples e fala de solidão, se pedirmos delicadamente ele entrega-no-la sem sequer querer saber o porquê talvez porque as solidões se reconheçam ao longe pelo cheiro umas às outras e não precisem de saber mais de si que essa existência entranhada.
Mimado desde bebé, nasceu no seio de uma família muito rica num enorme palacete. Fez o ensino primário todo em casa, com um professor particular, pois no primeiro dia de aulas no Colégio Parisiense chorou tanto, que os pais não tiveram coragem de o mandar de volta. " fui criado numa redoma de vidro", confesssa. Depois do divórcio dos pais, quando tinha 13 anos, foi morar para o Restelo com o pai. Por ele, inscreveu-se em Direito, mas depressa desistiu, "era muito chato". Depois de uma igualmente curta passagem pelo curso de Histórico-Filosóficas, o pai, que não sabia o que fazer com ele, mandou-o para Londres, com o irmão. Há um brilho que se acende ao falar dos amigos e das saídas de rapazes, da cumplicidade e alegria desses tempos… Sem quase pôr os pés nas aulas, regressou a Portugal e, depois da morte do pai, pouco tempo depois, foi morar com a mãe, de quem não se separou até ao último dia da sua vida.
"Viajámos muito os dois. Todos os anos íamos a Paris e Madrid. Conheço a Europa inteira, excepto a Grécia…" E o olhar perde-se num momento só dele, como se pensasse alto deixando-me aqui a segurar o seu fio de pagagaio solto.
Depois da morte da mãe, começou a sentir-se cada vez mais só e começou a deambular pelas ruas, pelos centros comerciais ou por qualquer lado onde o pudesse distrair daquela morte outra que o consumia como uma térmita persistente. Um dia na estrada alguém deixou cair da janela um aceno. Depois veio outro e outro e aos poucos como as luzes da cidade se vão acendendo ao cair da noite assim os acenos se sucederam. Explica sem esconder um certo orgulho o seu "milagre". Nos olhos cinzentos que falam por detrás dos óculos de massanegra, duas lágrimas contidas. Diz-me que sabe que o que faz "não é muito normal" eu respondo-lhe que a normalidade é como os suspensórios, cada um usa à sua medida. É o remédio que lhe permite disfarçar a solidão que o consome e atenuar a dor menos de um passado vivido à medida de outras vidas que não a sua. No baú dos sonhos perdidos jazem o curso que não tirou, o trabalho que nunca fez, os filhos que não teve e o grande amor que nunca conheceu. "Sinto-me só. Incompleto" lacrimeja e eu ali sem me consegui desembaraçar do espanto só me lembrei de agradecer e abraça-lo fugazmente sentindo o corpo magro debaixo da camisa a cheirar a goma, virar costas esquivamente quase tropeçando nos pés e sussurrando um boa noite tímido já sem o sorriso largo da chegada. "Encontramo-nos no céu", grita-me, repetindo o que um diplomata ucraniano lhe disse uma vez. Levanto os olhos da calçada e olho para trás.
Não percebo porque me vim embora, porque fugi. Só sei que estando aqui estou lá por inteiro. Talvez por existirem estranhas formas de amor e ter sido embebida numa delas...ou talvez por me ter apercebido num momento de lucidez que aquela figura a acenar no passeio era eu, somos nós.
2 comentários:
O que é tragicamente triste e assustadoramente desesperante é sabermos que ele é a incarnação da solidão. Mais do que algúém que diz adeus, ele é a memória presente da opressão da cidade, dos monstros de betão, das avenidas largas...esses gigantes com pés de barro que levam à loucura, ao desespero, à solidão. Ele diz adeus...mas será que diz adeus aos transeuntes? Não será a despedida da vida que teve e já não tem? Não será ele o holograma, o espectro, o fantasma da nossa solidão, da ausência? Elas que estão sempre presentes. Tal como ele, para nos lembrar que elas existem e estão ao virar da esquina...
Pobres de espírito aqueles que passam lançando piadas e fazendo caretas. Gozam com eles próprios e, pior, prosseguem nesse caminho cego e vão, despojado de sentimentos, ignorando que também eles, por serem assim, se arriscam à mesma fortuna...
Eu só passo por lá quando não dá mesmo para evitar. Custa-me ver a projecção dura e crua de um futuro que poderá ser o meu. Dói na Alma. Muito.
humm... só conhecia parte da história mas é como dizes, aquela figura a acenar no passeio somos todos nós.
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