que me despi
foi para fazer do meu corpo novo chão
que morri
foram tantas as vezes que falhei
mais ainda os caminhos que nem tentei
Eram tantas as palavras a nascer
e a boca tão pequena para as conter
E assim andei para trás na memória
aqui parei a contar-te uma história...
acordei com as bategas fortes da chuva na vidraça e com o frio a entrar junto as costas,num corredor estreito entre a t-shirt e a toalha de praia. é agosto e chove com a força de dezembro. ainda ontem mastigava o fumo dos fogos e o calor como uma mortalha. o tempo é incerto como os dias. a casa é grande e silenciosa como um grande elefante adormecido. lavei a cara com agua fria a cortar-me os dedos. vesti uma roupa leve. trinquei uma maçã. li. peguei numa caneta e escrevi um postal. tenho um vicio por esses artecfactos que nos ficam e nos recebem como braços.escrevi um breve comentário de passagem a recordar uma açorda quente partilhada a beira de um mar nocturo escondido do olhar mas imenso ali entre nós. abri a internet que é como quem diz que pega no megafone e se anuncia em alarido. procurei a torneira do gaz e deixei o esquentador engasgar-se com o inesperado trabalhar do estomago desacostumado. todos os triunfos sao grandes quando se está assim em estranhas terras. a agua quente fumegou e eu sorri. saí a pé. dei a volta ao largo.sentei-me tímida no café perante os olhares inquisidores. estendi o meu melhor sorriso como quem estende uma passadeira vermelha e pedi um galao e um croissant quente de chocolate. comi a ver uma novela estranha que me fez lembrar pinnypons esquizofrénicos,uma tal floribela que deixa miudos e graudos com o mesmo olhar pasmo das vacas nos prados. paguei e perguntei onde podia colocar o anuncio. foi o primeiro de muitos que espalhei e que a cidade viu nascer como cogumelos nas vitrines. passei por todas as ruas. as gotas grossas a escorrerem pelo rosto. a camisa preta colada a pele. o cheiro a bolos no ar a misturar-se com os dos queijos. gente muita gente de chapeu de chuva aberto. uma confusao de linguas misturada exoticamente na massa de bola doce. postais. mais postais. aqui é bem fácil fazer chegar aí este pedaço de terra e passado. escolho um que fala de um arco de cavaleiros por achar que nós somos meio artureanos na nossa audácia, no nosso arrojo e na maneira como lutamos ao lado e por aqueles que amamos.precisei de ti ali comigo rua de calçada acima no recorte da pedra desta babel improvisada por isso liguei-te e deixei que a tua voz escreve por mim as palavras a selar rapidinho para sair as 18h.há aqui muitas rotundas como se os homens revolvessem sobre si antes de escolher direcção. a camisa começa a empapar nas mangas e torna-se desconfortavel sentar na cadeira, por isso espraio-me em todos os balcões meio perdida em pensamentos forçando-me a sorrir sempre, a falar, a perguntar, a entregar de mão em mão a minha fragilidade. de que matéria seremos feitos, se de matéria tão diferentes somos. paro numa florista está lá a familia inteira. o rapaz moreno de olhos verdes fato preto pouco adequado ao seu corpo esguio conta-me a historia do seu patrão anterior que tinha sido agente imobiliário. o pai e a mae lamentam nao poder mudar de casa para me ajudar. falamos numa simpatia e familiaridade desusada entre estranhos. saio para a chuva. o rapaz moreno de olhos verdes segue-me e para-me diz que quer apenas saber o meu nome, respondo-lhe com vontade de lhe dar um nome lustroso e cantante, mas dou apenas o meu que já de tão usado quase nem corpo tem e do pouco corpo que lhe resta ainda o sovo para que seja capaz de ter sombra e hálito nas bocas dos que o balbuciam. ligo o calor no máximo assim que chego ao carro. oiço um cd que trouxe aí de casa e me acalma por dentro e me aquece e de repente robustas e viçosas como mulheres beirãs as memórias vão chegando espessas como chavenas de chocolate quente a fumegar à lareira. navego pelas estradas transbordantes sem destino, apenas experimentando aquele sem fim de saídas de rotundas e de placas indicando outras direcções. nunca percebi porque é que me perco sempre se querendo outras direcções aquelas nunca servem. estaciono. há um miado familiar que me segreda que é a morada certa. entro. pego ao colo no meu gato e deixo-o ronronar junto ao peito.ponho a água do banho a correr quente. tão quente que quase me deixo queimar para sentir de novo as pontas dos dedos. passo pelo pc à procura de um calor que encha como a maré cheia invade as praias. tenho a sensação que deixaste aberta uma página do teu diário aqui. sorrio por o teres deixado. gostava que me tivesses contado algo que eu fosse capaz de partilhar e não de hoje onde o tempo me excluiu de pertencer a toda a parte. dei por mim a desejar que tivesses escrito algo que eu provavelmente teria escrito e foi nesse instante que fiquei feliz por teres escrito apenas fosse o que fosse era essa a tua dádiva a minha foi ter desfeito um bocadinho de imperfeição.
Já te disse que o título me lembra Calvin & Hobbes?
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