Cobertor Quente

Wednesday, August 16, 2006 | 0 Comments

Neste dia de chuva de Agosto (soa propositadamente contraditório) pediram-me uma "coisa quentinha". Passei o dia com frio, apanhei umas pingas no caminho e por mais chá verde esfumaçante que tivesse entre as mãos, custou a arrancar esta sensação de arrepio do corpo que me cobria da cabeça aos pés. Mas lá consegui. Abri os ombros, enchi o peito, tirei o casaco e lá me coloquei em busca desses envelopes mágicos que sei que tenho guardados algures. Abri um caderninho antigo que mudei para o escritório quando mudei de empresa. Vasculhei, abri e fechei as gavetas da memória e de vez em quando lá espreitava um pensamento mais morninho. Recordei sons e cheiros de quando era muito pequena. Sei que ainda não andava na escola. Olha o parapeito do rés-do-chão da D. Laurinda onde ela me deixava fazer bolinhas com detergente que colocava cuidadosamente numa tigela e um arozinho de plástico. E o pequeno "Lord", cãozinho rafeiro mas simpático que abanava sempre muito a cauda, à espera de guloseimas. Lembro-me do calor a entrar pela janela e do final de tarde a cheirar a campo e a florinhas amarelas. Lembro-me do cheiro do tempero que colocava nos bifes e da calma que empregava em tudo o que fazia.
Aos domingos levantava-me muito cedo e deslizava de pézinhos descalços pelo corredor até ao quarto dos meus pais e a minha mãe segredava baixinho " O pai está muito cansado (ele fazia turnos e acumulava vários "trabalhos") e precisa de dormir mais um bocadinho". Levantava os lencóis com várias camadas de cobertores macios e pesados e deixava-me dormir ali um bocadinho no meio deles. Lembro-me que às vezes não dormia, ficava simplesmente ali, como se fosse o último refúgio de tranquilidade no planeta.
Por vezes acordava muito cedo e ficava em silêncio a fazer legos na sala. Tinha todo o tempo do mundo e podia construir tudo antes de todos acordarem. Também gostava de desenhar. Adorava quando me ofereciam lápis e canetas novos. Embora soubesse que as cores eram as mesmas, um conjunto novo de lápis de côr sempre exerceu um grande fascínio em mim. Ainda continua a fazer. Vá-se lá explicar porquê. Material de papelaria novo, sejam lápis, canetas, papeis ou blocos, sempre exerceram em mim o efeito de "mundo novinho em folha" a descobrir.
Uma folha nova para começar tudo, um desenho para modificar e dar nova vida. Assim continua a ser. Acabei de almoçar e estivemos à conversa de como iriamos re-organizar o escritório/biblioteca lá de casa e conciliar com isso todos os instrumentos de música e os meus quadros e respectivo material de pintura. Os livros, as estantes, o cheiro das tintas, o pó do pastel, as telas. A bateria, as guitarras, os sintetizadores. As coisas que têm a nossa história dentro. E tudo isto porque abri um caderno antigo e uns postalinhos que vou coleccionando daqueles que me querem bem. Gosto de ter isso tudo perto de mim, seja em casa ou na empresa. Lembram-me quem sou e de quem gosto para além das convenções, diplomacias e reuniões de blazer e saia a condizer.
São como cobertores quentinhos que aquecem por dentro, que evocam serões calmos com lenha a crepitar, a mantinha no colo, a cabeça enroscada no teu ombro, as palavras derramadas em riso morno.

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