Os miseráveis

Tuesday, July 18, 2006 | 0 Comments

Tenho uma vaga ideia de há três décadas se falar da Índia como uma espécie de Biafra. Entretanto, a economia melhorou; há indianos a viver melhor que portugueses ou suecos. Outros, pior. As pessoas dizem, agora, que há duas Índias, uma capitalista, muito burguesa, e outra pobre, miserável. Atribuem culpas ao sistema de castas. Os miseráveis continuam na extremidade inferior, fazendo os trabalhos sujos, que ninguém mais pode fazer: remover os excrementos que os outros produzem, executar todas as tarefas indignas e depreciativas. Vivem mal, comem mal, dormem na rua, não têm direitos civis, nem educação, nada, de tudo se vêm privados.
Por aqui não temos castas, mas temos os mesmos reféns do ciclo de miséria material ou espiritual, ou ambas, em que nascem e vivem. Alguns tentam, outros nem se dão ao trabalho. Reconhecemo-los pela forma como falam, como andam, como se vestem, penteiam. A partir do momento em que saímos de casa cruzamo-nos com essa casta. Alguns trabalham - Não é com orgulho, que bem preferiam fica a escarrar ódio ao governo e aos outros, os que nasceram com sorte - Trabalham nos cemitérios a enterrar e desenterrar corpos, na limpeza das ruas e das lojas, nas escolas, na recolha do lixo, nos hospitais, nos canis do estado e nos matadouros, nos campos, nas fábricas. Creio que estejam todos mortos. Creio que trabalhem como robots, que sejam robots fora do trabalho. A vida parece ser-lhes muito pesada. Roçam-se pelas esquinas das tabernas, e gastam tinta a tinta às cadeiras, anoitecem nos bancos de jardim, compram actrizitas baratas que lhes massagem o ego e o sexo caído, batem nas mulheres e nos filhos, adormecem em vergas de silêncio em tugúrios.
Para um miserável nacional, qualquer outro que venha do estrangeiro para trabalhar e ganhar dinheiro no que ele recusa fazer, é mais miserável do que ele. Os miseráveis verdadeiros não gostam dos que consideram miseráveis. Nem de ninguém. Consideram-se uma casta de sangue nobre, iluminada pelo conhecimento divino da miséria e do martírio, da bebedeira e da grosseria. Chateia-os que alguém faça o trabalho sujo e tão mal pago a que poderiam aceder. Porque os têm direitos. O primeiro deles é não ser miseráveis. Mas não é que façam por ser outra coisa qualquer. O seu sonho era que lhes saísse o Euromilhões para não trabalharem. Aí é que era! É que este país ia para a frente! (não se sabe é onde é que isso seria) Ouço-os a dizer isto sentados no snack-taberna, bebendo cervejas e ruminando toresmos, de fato-de-treino, enchotando à lambada os putos ranhosos como se fossem moscas, à terça à tarde... e à segunda, à quarta, à quinta, à sexta e ao sábado. É a sua única ocupação conhecida. O café. A amarguinha. A mine. O penalty. Ao domigo veste o melhor fato puído e arrasta a sua espectoração crónica à missa, para remissão dos pecados e um almoceco à borla servido no fim. Já tentaram quase todos abandonar a vocação de crentes, mas não encontraram em mais lado nenhum os periados e a caridadezinha que lhes dá tanto jeito. Os miseráveis mais batidos nas repartições e mini formação em segurança social vivem do rendimento mínimo, dos abonos dos filhos e do cão pulguento e ainda conseguem sanguesugar alguma instituição de caridade.
Não sei se existe grande paralelo entre os miseráveis da Índia e os miseráveis ocidentais. Na Índia sei que se envergonham um bocado, e procuram trabalho para conseguir comer aqui o peixe fritismo exala nos bairros de lata com carros tunnados parados à porta.
Um miserável tem o seu orgulho e é verdade que pode ter um casita mal apanhada da câmara e comer postas de ranço ao jantar, mas tem de ter o seu cordão de ouro, o carrinho para másculas rotações e a renda para os cigarros lhe cairem do beiço de boi manso.

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